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“E se eu me arrepender?”A revogação da adoção sob a perspectiva jurídica e humana

  • Foto do escritor: FBC Advocacia
    FBC Advocacia
  • 23 de jul.
  • 4 min de leitura
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Nem todo vínculo nasce do desejo. Alguns precisam de tempo, estrutura e apoio para se consolidar. E, mesmo com tudo isso, ainda assim, podem não resistir à realidade.

O sistema de adoção no Brasil é estruturado com rigor técnico e ético para garantir o melhor interesse da criança e do adolescente. Cursos de habilitação, avaliações psicossociais, entrevistas com assistentes sociais, pareceres do Ministério Público e homologação judicial são etapas obrigatórias que antecedem a adoção definitiva. Porém, mesmo com esse percurso formalmente qualificado, nem sempre o desfecho é o esperado, e é preciso coragem para falar sobre isso.

A pergunta “E se eu me arrepender?” costuma habitar o silêncio dos corredores dos fóruns e das conversas em tom de confissão. Mas é uma pergunta legítima. E, sob o ponto de vista jurídico, possível de ser enfrentada. Mas precisa, com urgência, de escuta jurídica, sensibilidade institucional, além de exigir, de todos os envolvidos, responsabilidade, técnica e coragem.

Adoção é irrevogável... sempre?

A legislação brasileira, em especial o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), estabelece a adoção como medida excepcional, irrevogável e orientada pelo princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. A partir do momento em que a sentença de adoção transita em julgado, a filiação torna-se definitiva e plena, inclusive com repercussões sucessórias e registrais.

Ocorre que, entre a habilitação e a sentença, existe um campo fértil de experiências concretas, que nem sempre se ajustam ao modelo idealizado. A exemplo disso, o período de convivência, formalizado pela guarda provisória para fins de adoção, é justamente o momento em que a família e a criança devem experimentar, com acompanhamento técnico, os desafios da nova estrutura familiar.

É nesse período que surgem os sinais de alarme: ausência de vínculo afetivo, episódios de rejeição ou violência, dificuldades severas de adaptação, sobrecarga emocional dos adotantes e o colapso da rede de apoio. Quando isso ocorre, o silêncio institucional pode ser mais danoso que o próprio arrependimento.

Adoção e a cláusula da irrevogabilidade: há exceções?

A irrevogabilidade da adoção tem razão de ser. Ela visa garantir segurança jurídica, estabilidade emocional e impedir rupturas traumáticas na vida de crianças e adolescentes que, muitas vezes, já sofreram perdas sucessivas. No entanto, como toda regra no Direito, ela não é absoluta.

Ainda que o ECA reforce a irrevogabilidade no §1º do artigo 39, a doutrina e a jurisprudência têm admitido a possibilidade de reversão da adoção em hipóteses excepcionais, quando demonstrada de forma inequívoca a inviabilidade do vínculo familiar, o prejuízo à saúde emocional de todas as partes envolvidas e, principalmente, o risco à dignidade da criança.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já reconheceu em casos isolados que a adoção pode ser desconstituída quando não houver o estabelecimento de relação socioafetiva, desde que seja comprovado que a manutenção da filiação causaria mais danos que benefícios. Nessas hipóteses, o Judiciário tem entendido que o rompimento — por mais doloroso que seja — pode ser a solução menos gravosa diante de um vínculo fictício e adoecido.

E quando a adoção ainda não foi homologada?

Antes do trânsito em julgado, a revogação do processo de adoção é viável e menos complexa. A guarda provisória pode ser revogada por decisão fundamentada, a partir de requerimento da própria família adotante, do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do Conselho Tutelar.

O mais importante, nesse momento, é que o pedido não seja encarado como fracasso moral, mas como reconhecimento de limites estruturais. Muitos adotantes chegam até esse ponto sem preparo emocional, sem suporte psicológico e com expectativas idealizadas, especialmente quando se trata de adoção tardia ou de crianças com histórico de institucionalização prolongada e traumas múltiplos.

Adoção por profissionais do Direito: quando o saber jurídico não protege do colapso emocional

É comum que mulheres bem-sucedidas, com carreiras consolidadas — como advogadas, juízas e promotoras — busquem a adoção como um projeto de maternidade solo. São mulheres que dominam a linguagem do processo, conhecem os ritos, têm acesso aos melhores cursos e redes de capacitação.

Mas o Direito, nesse contexto, não é suficiente para blindar contra o impacto real do cotidiano: noites sem dormir, resistência ao afeto, agressividade inesperada, queda de produtividade no trabalho e o isolamento que acompanha a culpa por “não estar dando conta”.

Esse perfil de adotante, muitas vezes, demora mais a pedir ajuda. Por saberem como funciona a estrutura, sentem vergonha em admitir que estão em sofrimento. E o que era para ser um exercício de amor vira um campo de exaustão emocional.

O papel da escuta jurídica e da rede de apoio

É nesse ponto que o atendimento jurídico especializado se torna essencial. A escuta qualificada, que reconhece a singularidade do vínculo, a complexidade da situação e as implicações jurídicas da decisão, pode ser o divisor de águas entre o abandono e a reestruturação assistida.

Antes de qualquer judicialização, é preciso compreender o que está em jogo: não apenas o destino de uma criança, mas a dignidade de uma mulher (ou família) que tentou, acolheu, se doou, e, agora, precisa de amparo para tomar uma decisão extremamente difícil.

A rede pública e o sistema de justiça devem evoluir para não perpetuar o silêncio ou o julgamento. É possível tratar o tema com ética, responsabilidade e técnica, sem criminalizar o sofrimento de quem deseja o bem da criança, mas não consegue mais sustentar o vínculo.

Revogar uma adoção não é, por si só, um ato de irresponsabilidade. Em muitos casos, é um gesto de honestidade, um reconhecimento de que o amor, por mais genuíno que tenha sido, não encontrou espaço para crescer. E quando isso acontece, o papel do Direito é oferecer caminhos de retorno com dignidade, e não portas fechadas com silêncio.

O maior erro é ignorar o sofrimento de quem adotou. A lei tem instrumentos para proteger as crianças, mas, de igual modo, precisa proteger quem as acolheu com boa-fé e agora pede ajuda para não causar mais dor.

Se essa reflexão dialoga com algo que você vive ou conhece, saiba: existem caminhos. E eles começam com uma escuta segura, técnica e humana.


Quem escreveu esse artigo?

Dra. Jéssica Pinho

Advogada especialista em Direito de Família e Trato Sucessório;

Especialista em Direito Civil e Processo Civil Aplicado;

Expert em Processos de Adoção;

Especialista e Palestrante em Direito Público Municipal;

Palestrante e Consultora em Licitações e Contratos Administrativos;

Aluna Especial do Programa de Mestrado de Família na Sociedade Contemporânea - UCSAL

@‌dra.jessicapinho

 
 
 

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